domingo, 23 de maio de 2010

As portas da Cidade de Pedra

“It is a city of brilliant sunshine and purple shadows; of dark entries and latticed windows; of mysterious stairways, and massive doors in grey walls which conceal one does not know what; of sun-streaked courtyards and glimpses of green gardens; of barred windows and ruined walls on which peacocks preen. It is a town of rich merchants and busy streets; of thronged market-places and clustered mansions. Over all there is the din of barter, of shouts from the harbour; the glamour of the sun, the magic of the sea and the rich savour of Eastern spice.
This is Zanzibar!”
(Major FB Pearce, 1919)

Noventa anos depois, isto ainda é Zanzibar!
Foi assim que senti Stone Town, á medida que deambulava pelas ruelas estreitas, observando as grandes portas de madeira pelas quais é tão famosa.
Os motivos decorativos entrelaçam parte da cultura suahili com influências indianas e árabes. As arcadas redondas são de origem indiana, enquanto que a ascendência árabe se reflecte nas arcadas quadradas e nas inscrições com frases do Corão. Os temas esculpidos são variados, mas não isentos de significado: as correntes que emolduram as portas evocam segurança, os lotus e as rosetas nas partes centrais representam a prosperidade e os peixes a fertilidade.
Independentemente do estilo a que pertencem, algumas apresentam uns espigões de metal salientes. Hoje têm uma função meramente decorativa, mas inicialmente o seu objectivo era o de impedir os elefantes de abalroarem  as casas.
Elefantes?! Em Zanzibar?!!
Pois, parece que sim, em tempos que já lá vão. Marco Polo relatou que viu por aqui bastantes, mas quando os pés lusitanos pisaram estas paragens, no século XVI, já os paquidermes eram lendas do passado.
De qualquer forma, foi tudo muito antes de qualquer destas portas ter sido construída. Os espigões metálicos que, na Índia, por exemplo, espicaçavam elefantes de guerra, em Zanzibar sempre tiveram a pacífica utilidade de oferecerem beleza.

Fotos: RFerreira. Zanzibar, 2009

terça-feira, 18 de maio de 2010

África Minha

A primeira vez que vi África, como tantas outras terras, foi no cinema. E, como por tantas outras terras, apaixonei-me de imediato!

Muito antes de Meryl Streep e Robert Redford sobrevoarem um lago pintalgado de flamingos cor de rosa, ao som de John Barry, a minha África era a dos anos dourados de Hollywood.
A começar pelo ruidoso leão da MGM (que, ao que parece, era de Dublin!) a cativar-me para um mundo de fantasia em que tudo era perfeito, asseado, glamoroso.
John Wayne caçava rinocerontes sem amarrotar as calças. Ava Gardner chegava ao mato com cinco malas Louis Vuitton, e tomava duche num improvisado chuveiro ao ar livre. Clark Gable jantava de smoking, Grace Kelly passeava-se na selva de lenço Hermés na cabeça e Elsa Martinelli, depois de horas a chocalhar em trilhos poeirentos numa carrinha de caixa aberta, dançava com maasais e tocava piano. E nenhum cabelo saía do lugar e as roupas estavam sempre limpas e engomadas.
Depois havia os animais.... elefantes bebés obedientes como cães, chitas que se deixavam acariciar, jibóias chamadas Joe e uma leoa chamada Elsa.
Material mais do que suficiente para espicaçar a imaginação de uma pré-adolescente, já para não falar nas hipopótamas bailarinas de Disney ou no nosso leão da Estrela. Filmes vistos vezes e vezes sem conta; o fascínio e a credulidade atiçando a expectativa de um dia vir a conhecer aquela terra tão longínqua quanto excitante, cheia de hatari e mogambo.
Quando, finalmente, pus o pé em África, já tinha idade para saber que a vida não é como nos filmes.

Chego apenas com uma mala (quase de cartão) e guarda-roupa by Decathlon. Depois de horas nos assentos do jeep, que fazem inveja a qualquer trampolim, os meus ossos não têm vontade de dançar e as minhas roupas suspiram por um ferro a vapor. E descubro que o pó africano tem uma personalidade própria, que se infiltra nos recantos mais esconsos, das lentes de contacto à cova dos dentes.  Ao segundo dia, as calças têm tanto pó que se seguram sozinhas em pé e, por mais banhos que tome, há sempre uns bocadinhos do trilho que me acompanham, furtivamente, ao jantar.
Porém, o fascínio com que agora observo os animais de tão perto é igual ao que sentia quando via aqueles filmes. Não. É maior, porque agora tem cheiro, tem sabor, tem vida e entranha-se na alma.
Exagero?
Acho que não.
Por muito que eu goste de estar em casa (e gosto muito), não há technicolor que reproduza os tons mesclados de um pôr-do-sol africano; nenhum dolby surround ecoa fielmente o grito de um elefante na savana; a gargalhada de uma hiena. E não há definição suficientemente alta para traduzir a emoção de observar sem obstáculos uma chita a caçar, um leopardo empoleirado numa árvore, uma leoa a dormir com as suas crias, embaladas pela brisa quente, à distância de um toque que sabemos impossível.
E porque, às vezes, a vida imita a arte, também eu tomei duche ao relento, caminhei com maasais e percorri trilhos numa carrinha de caixa aberta.
Mas isso...... são outros filmes!
Fotos: Parques Naturais de Manyara e Serengeti. Tanzania, 2009.