quarta-feira, 28 de setembro de 2011

O templo encantado de Karni Mata (iii) Brincando com os Deuses


Dirigi-me ao interior do templo. 
No centro do edifício estava o santuário em honra de Karni; uma pequena capela em mármore que abrigava a estátua da deusa, datada do século XV.
Sempre atenta à posição dos ratos, contornei o santuário através de um corredor não muito largo e pouco iluminado. Ao fazê-lo, cruzei-me com uma idosa, curvada sobre um curto cajado, amparada no seu andar cambaleante por duas mulheres mais jovens. Com o tronco praticamente paralelo ao chão, caminhava como que rastejando. Tal como os pequenos deuses a quem, impedida de olhar os céus, oferecia a sua devoção.
Segui-a até à frente do santuário onde já outros fiéis aguardavam: as mulheres de saris coloridos sentadas no chão, os homens de pé, à sua volta. O sacerdote aceitou as oferendas, ateou uma pequena fogueira em frente ao altar e começou a recitar ladainhas, enquanto fazia soar um estridente sino de prata.


Absorta nesta contemplação, comecei a baixar a guarda. Esqueci-me de onde estava e de quem devia vigiar. Algo roçou o meu pé. Um rato mais atrevido acabara de lhe passar por cima. O meu coração começou a bater com mais força. Enojado, assustado, excitado.

Apressei o passo para contar  a Muhipiti, mas ela já estava na fase seguinte. Fui dar com a minha amiga inclinada sobre um ratinho ... fazendo-lhe festas na cabeça. 
Festas na cabeça.... !!!!!
Do rato ... !!!!!!
- Francamente! E se ele te morde?!
Ela riu-se sem deixar de afagar o ratito e disse, tranquila:
- Nã...


Face à sua descontracção, não quis ficar atrás. Munida de uma coragem que só me visita durante as férias, lá me chego ao pé do ratito que, tenho de admitir, era mesmo patusco. Toco-lhe na cabeça. Primeiro só com a ponta do dedo, a medo. Depois comecei a afagá-lo suavemente. Logo o seu focinho se dirigiu para a minha mão e senti o seu dentinho contra o meu dedo, as cócegas do seu bigode.
E, derreti-me! O encantamento tomou o lugar do nojo e os repelentes roedores transformaram-se em ratinhos adoráveis.
O resto do tempo que passámos no templo foi mágico. Não consegui deixar de fazer festas a todos os ratinhos que via e até achei piada quando um deles me fez um buraquinho na meia de vidro.
A minha perspectiva alterou-se por completo. Entrara num mundo diferente, fora da realidade. Por isso, não foi de estranhar que quando um simpático ratinho se empoleirou num degrau e começou a puxar as calças cor-de-rosa da Muhipiti, eu imediatamente pensasse nas ratinhas costureiras do filme Cinderela.


Foi dos momentos mais recompensadores desta viagem, a manhã que passei no templo onde 20,000 mil ratos são alimentados, protegidos e venerados.

Fotos: Muhipiti. Karni Mata, Índia. Novembro. 2010.

sábado, 24 de setembro de 2011

O templo encantado de Karni Mata (ii) Descalças no templo

Seria impensável passar por Bikaner sem visitar este templo.
A ideia atraía-me tanto quanto me assustava. Ratos? Hyagh! Que nojo!!


Mesmo assim, lá fomos. A Muhipiti, que é pouco dada a estes melindres, entrou confiante e ansiosa por fotografar. Eu segui-a, com passos hesitantes, agarrando a mochila à minha frente, como se fosse um escudo.


Para lá das grandiosas portas de prata, vi o primeiro rato. Era pequeno e rechonchudo. Atravessou o pátio a correr, parou por uns instantes a cheirar o ar e desapareceu por um buraco na parede. Respirei fundo, agarrei-me com mais força à mochila e avancei.
O ar morno da manhã não era pestilento, como seria de esperar. Antes trazia emprestado o aroma de chamuças e caril que exalava das casas vizinhas.
Havia uma rede a cobrir todo o pátio exterior com o intuito de proteger os ratos dos ataques de aves de rapina. Já aos pombos não era vedado o acesso. Entravam pela porta principal, altivos e com o papo inchado de quem tem direito a partilhar do manjar dos deuses. 
Por entre a malha metálica, o sol esgueirava finos raios, aquecendo o chão que os meus pés, descalços, iam tacteando com cuidado. Não me preocupavam os grãozinhos de milho esquecidos aqui e ali, mas uma frase que lera no meu American Express: quem pisar um rato tem de pagar ao templo o peso dele em ouro. Não sei qual das duas acções seria a mais desagradável...
Por seu lado, Muhipiti passeava-se descontraidamente, fotografava as esculturas embutidas nas paredes de mármore e os ratos, por ali espalhados agora às centenas, dedicando-se às mais diversas actividades, desde a higiene pessoal à catação social.


Num recanto do pátio encontrei a imagem que já tantas vezes vira na internet: dezenas de ratos dispostos lado a lado no rebordo de uma grande bacia cheia de leite. Confesso que comecei a sentir uma certa ternura por aquelas criaturinhas, à medida que as observava a beber sofregamente. Dei por mim a pensar que estava diante de mais uma contradição indiana: enquanto crianças morriam de fome nas ruas, estes ratos eram mimados e alimentados como reis.

Foi então que um restolhar de asas me sobressaltou. Um pombo viera aterrar mesmo ao meu lado, para me libertar de tão vãs filosofias.


... continua ...

Fotos: Muhipiti. Templo de Karni Mata, Índia. Novembro 2010.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

O templo encantado de Karni Mata (i)


Há muito, muito tempo, no longínquo reino do Rajastão, vivia uma mulher mística e virtuosa, que se dedicava de alma e coração aos pobres e aos oprimidos. Era tida como a incarnação da deusa Durga e chamava-se Karni Mata.
Um dia, o seu enteado Lakhan afogou-se num lago e Karni Mata implorou a Yuma, deus da morte, que ressuscitasse o rapaz. Yuma replicou que não conseguia fazê-lo, mas que ela, enquanto incarnação de Durga, a Invencível, poderia devolver o jovem à vida. Karni Mata fechou-se com o corpo do enteado numa gruta durante três dias, ao fim dos quais Lakhan ressuscitou. Foi então que Karni Mata declarou que nenhum membro da sua família alguma vez morreria. Todos reencarnariam como ratos, sob a sua protecção.
E assim foi que os devotos da deusa Karni ergueram um templo em seu louvor, onde milhares de pequenos ratinhos têm vivido felizes para sempre.


Acredite-se ou não na lenda de Karni Mata, há factos relacionados com este templo ainda envoltos em mistério.
- porque é que nunca houve peste na região de Bikaner?
- porque é que não se vêem ratos nas imediações do templo?
- porque é que os ratos não mordem ou se sentem ameaçados pelos visitantes?
- porque é que nunca se vêem crias e a população se tem mantido constante ao longo dos séculos?
- porque é que os milhares de ratos de Karni Mata são todos da mesma dimensão e cor?
- porque é que existe apenas um rato branco (considerado a incarnação da própria Karni Mata, é extremamente raro e auspicioso vê-lo)?

Talvez apenas os habitantes do templo conheçam os seus segredos ....


... continua....


Fotos: Muhipiti. Karni Mata, Índia. Novembro 2010.