sexta-feira, 25 de junho de 2010

Muito Longe de Casa

Gonçalo Cadilhe publicou, na sua página do Facebook, o seguinte excerto de “Dias em Goa”.
"Será a língua portuguesa a pátria destes goeses? Se não, que outro significado atribuir ao gesto do senhor Miranda, da loja de fotocópias, há uns dias atrás? Quando lhe disse a minha nacionalidade, extraiu um livro de uma gaveta e exibiu-mo como uma bandeira: era o “Memorial do Convento”.
Escrevi o comentário: “A mim, só me saem Cristianos Ronaldos e afins”, pensando no deprimente chorrilho de nomes de jogadores de futebol que oiço sempre que digo que sou portuguesa. ("A minha Pátria é..... Cristiano Ronaldo?!)

Foi então, (bem, alguns dias depois) que me recordei deste episódio, passado numa loja de Stone Town.
Era uma loja pequena, como quase todas na cidade velha. Tinha as paredes forradas de quadros que retratavam, com as cores quentes de África, os seus animais, as suas gentes.
O dono era um jovem africano de ar afável que estava sentado à porta, pregando molduras.
Gostei de um dos quadros expostos e preparei-me para regatear. É um ritual que odeio e para o qual não tenho jeito nenhum. Por sorte, tal não sucede com as minhas amigas que são exímias nesta arte.
Sem apontar, para não demonstrar muito interesse (o que é sempre prejudicial numa negociação), tratei de lhes fazer ver qual o que queria comprar. Em português, naturalmente, para que não me entendesse o jovem.
“Quero aquele ali ao fundo.... o terceiro a contar da direita”.
Ao que o dono da loja responde, mal contendo o entusiasmo:
- São portuguesas?!!!! Eu sou de Moçambique!!!
Chamava-se Bernardo. Estava há 8 anos em Zanzibar, mas deixara a sua terra havia muito mais tempo. Para não se esquecer da língua portuguesa, lia e relia o mesmo livro, cujo o título era apropriado: “Muito Longe de Casa”.
Era visível o prazer que sentia em estar a falar connosco na língua que também era a sua.
Conversámos durante bastante tempo e, quando tivemos mesmo de nos ir embora, deixámos-lhe um livro em português, que uma de nós andava a ler. Agradeceu-nos com a promessa de que ensinaria o seu filho de 6 anos a falar a nossa língua.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Dr. Livingstone, I presume...?!


Adoro esta frase!
Gosto de imaginar o jornalista H.M. Stanley a dizê-la, com um perfeito sotaque britânico, ao encontrar David Livingstone no coração da selva africana.
Repito a frase na minha mente, apurando o sotaque, acertando o ritmo das palavras com o dos meus passos enquanto percorro as ruas de Stone Town, preparando-me para o momento em que encontrarei o missionário escocês.
Não o próprio (obviamente!), mas o espírito do seu legado.
David Livingstone é mais conhecido pelas explorações que realizou na África Continental, mas muitas das suas expedições começaram ou terminaram em Zanzibar.

A rua estreita desagua numa pequena praça de forma irregular. Destacam-se dois edifícios altos: uma igreja anglicana e uma mesquita. Ao centro, uma árvore milenar.
Neste local existiu o maior mercado de escravos de Zanzibar.
Descemos às antigas catacumbas, hoje convertidas em museu, onde eram mantidos mais de 75 homens e mulheres, sem luz, sem sanitários e com muito pouca comida. As doenças proliferavam por entre as paredes de pedra que fortificam este espaço exíguo e de tectos baixos. Os poucos que sobreviviam a este inferno eram vendidos e transportados para a Europa e Estados Unidos, condenados a um purgatório de trabalhos forçados.
Atravessamos a praça e entramos na igreja. Conta-nos o guia que a pia baptismal foi colocada no sítio onde eram mortas as crianças escravas cujas mães tinham sido vendidas. O mármore do chão tem tons rosáceos, espelho do sangue inocente aí derramado. No entanto, o simbolismo redentor pretendido não teve eco na população de Stone Town do século XIX, princípios do Sec. XX, que se recusava a trazer as suas crianças para serem baptizadas num local de tão nefasta memória.
David Livingstone teve um papel decisivo na abolição da escravatura neste continente e,  polémicas à parte (Livingstone terá utilizado mão-de-obra escrava nas suas expedições), Zanzibar recorda-o com gratidão.
Morreu na Zâmbia em 1873. No altar da igreja onde estamos há um cruxifixo de madeira, esculpido a partir do tronco da árvore debaixo da qual o coração de Livingstone foi enterrado.