quinta-feira, 26 de maio de 2011

Citando Moravia

O eco da Índia de Moravía (1961) chega aos nossos dias (2010), ilustrado por Muhipiti.

“A Índia é um conceito da vida. (...) O bem conhecido conceito, segundo o qual tudo aquilo que parece real não o é, e tudo aquilo que não parece real é real. Deste conceito deriva a desvalorização completa da vida como coisa absurda e dolorosa, e a convicção de que o homem não deve agir para melhorar o mundo.”


"Também voltarei a ver este camponês (...), centenas de vezes, durante a viagem pela Índia; variará, mas pouco, a cor do turbante ou o tecido do pano, porém a sua expressão será sempre aquela, um misto de paciente resignação, de imperturbável ignorância e de ancestral melancolia.”

“(…) na Índia a mão que se estende para implorar caridade é idêntica à mão que se estende para colher um fruto que pende de um ramo e não pertence a ninguém”; (…) na origem daquele gesto encontra-se uma situação normal e geral de pobreza extrema, que muitas vezes acumula com um ofício exercido com competência e assiduidade. Deste modo, a esmola é quase uma obrigação para quem a dá e quase um direito para quem a pede.”


“O próprio fenómeno da mendicidade levanta a suspeita de que a pobreza na Índia não é um facto contigente e remediável, mas sim um traço constitutivo, de modo que modificá-la ou tentar anulá-la significaria alterar completamente o carácter do povo indiano.”

“(…) as lojas pequeníssimas, transbordantes de mercadorias, estão no alto, no cimo de quatro ou cinco degraus, porque o esgoto a céu aberto e pestilento escorre entre o passeio e as casas; vistas de baixo, com os seus velhos espelhos dourados, os seus tapetes puídos, as suas prateleiras decrépitas e os seus vendedores acocorados no chão, seduzem com a ilusão de hipotéticos produtos inéditos de um artesanato exótico e ingénuo. Mas é uma ilusão que pouco dura; subidos aqueles degraus, encontramo-nos perante os objectos do costume, fabricados em série e ainda por cima de fraca qualidade (…).”

“(…) o estrangeiro sentir-se-á continuamente surpreendido por ver os indianos dedicarem os cuidados mais meticulosos a ablusões e precauções que lhe parecem surpéfluas (…), e por outro lado ficarem completamente indiferentes perante a sordidez e a imundice que são próprias dos bairros mais pobres das suas cidades.”

Texto: Alberto Moravia, Uma Ideia da Índia (ed. Tinta da China)
Fotos: Muhipiti

terça-feira, 17 de maio de 2011

Uma valsa no Céu

Quando a conversa é voar de balão, as opiniões dividem-se entre: “Ah, já fiz, tá feito” e “Quero mais!!”
Descobri que me identifico com estes. Depois do excitante baptismo sobre a savana do Serengeti, não hesitei em repetir a experiência na Índia.
De madrugada, atravessamos as ruas de Jaipur, com destino a Amer. Paramos junto a uma clareira, onde jazem dois gigantescos farrapos coloridos à espera do sopro quente da vida.
O nosso motorista dos céus recebe-nos com um grande sorriso. Chama-se Fernando, é de Barcelona e está encantado por ter dos hermanas a bordo. Os restantes três passageiros são, sem surpresa, americanos reformados. Felizmente, desta vez, fomos dispensadas dos tradicionais oh my god!
Depois de um aromático e reconfortante chai, partimos, deslizando ao sabor suave do vento.
A neblina peganhenta que nos envolve turva um pouco a visão, mas ainda distingo duas galinholas e um veado correndo entre montes e vales pouco profundos, de vegetação quase desértica. O silêncio tranquilo e embalador, apenas interrompido pelo atiçar das chamas, compensa a falta de espectacularidade da paisagem.
Então, Fernando solta uma expressão animada, quando se apercebe que o vento hoje está generoso e nos conduz mesmo por cima do magnífico Forte de Amer, cujas imponentes muralhas abraçam um lago artificial.

Já não me lembro quanto tempo voámos. Sabe sempre a pouco.
Lentamente, o nosso balão vai descendo.
Fernando mudou-se para Jaipur com a família há dois anos e, desde então, faz este percurso duas vezes por dia, sempre que as condições atmosféricas o permitem. A sua experiência diz-lhe que é sempre preferível aterrar antes de sobrevoar a cidade. Desta vez, está a apontar para um terreno baldio com aspecto de campo de futebol da liga dos últimos.
Chegados a terra firme, aplaudimos e aguardamos autorização para sair da caixinha. Esperamos que o ajudante de Fernando vá pedir a alguém que abra o portão do campo, cujos muros têm mais de dois metros de altura.
Ali perto, quatro homens sikh, de tronco nu e turbante na cabeça, estão a jogar vólei. À nossa volta começa a juntar-se um grupo de crianças sujas e maltrapilhas. A sua expressão é de medo e curiosidade. Não sei porquê, mas lembram-me hienas vigiando uma presa que já tem dono.
O ajudante regressa com a notícia de que o portão não se abre. Toda aquela gente deve ter saltado o muro. A Fernando, não resta alternativa se não voltar a pôr o balão no ar, mas apenas o suficiente para que ele salte o muro sem voltar a ganhar os céus. E isso requer preparação.
 Os jogadores de vólei continuam alheios à nossa presença, como se fosse natural um balão daquele tamanho estar ali àquela hora. Já os miúdos vão ganhando confiança. Rendidos ao sorriso de Muhipiti e ao feitiço da sua máquina fotográfica, metem conversa, fazem poses e macacadas à nossa volta. E, finalmente, ajudam a içar o balão por cima do muro para fora do campo, onde a aventura termina.
Até à próxima.
Não.
Até às próximas!

Fotos: Muhipiti. Jaipur, Índia. 2010

domingo, 8 de maio de 2011

Liberdade ...

Ai que prazer
não cumprir um dever

Varanasi, Índia

Ter um livro para ler
e não o fazer!
Ler é maçada,
estudar é nada.


Templo Jain. Bikaner, Índia

O sol doira sem literatura.
O rio corre bem ou mal,
sem edição original.
E a brisa, essa, de tão naturalmente matinal
como tem tempo, não tem pressa...

Varanasi, Índia

[...]

Quanto melhor é quando há bruma.
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Karni Mata, Índia

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,

Entre Bikaner e Jodhpur, Índia

Flores, música, o luar, e o sol que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

Fatehpur Sikri, Índia

E mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças,
Nem consta que tivesse biblioteca

Meherangarh Fort, Jodhpur, Índia
Texto: Fernando Pessoa
Fotos: Muhipiti