quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Encontro sem hora marcada

10h00. Parque Nacional de Rathambore. Índia. 
Saímos cedo do hotel para procurarmos o tigre asiático. Estamos há quase duas horas num jeep descapotável e está a chover. A vegetação é desinteressante e poucos animais se aventuraram a sair com este tempo: alguns veados, pavões e galinholas. 
Quando entrámos no parque a Muhipiti perguntou-me:
- Então, a que horas marcaste o encontro com o tigre?
Mas, desta vez, a receita mágica de Ngorongoro não surte efeito e o tigre não aparece à hora que estipulei.
Quando os solavancos embaladores do jeep, o ar quente a roçar-me o rosto e a expectativa não chegam para fazer o safari valer a pena, vou pensando em marcar uma massagem no resort para compensar a decepção.



Mais uma hora, mais pássaros coloridos e uns gamos curiosos e, finalmente, o tigre decide juntar-se à festa. 
Festa sim, porque longe da reverência silenciosa prestada aos animais em África, na Índia tudo é barulho e algazarra. Os turistas berram, excitados, e os motoristas quase se atropelam para chegarem primeiro ao tigre (e às gorjetas dos clientes satisfeitos). A perseguição é frenética, sem tempo para grandes contemplações. 



Mesmo assim, a sensação de ver este grande felino é avassaladora. Uma emoção que sempre me arrebata: o espectáculo da natureza a desenrolar-se em frente aos meus olhos.
De um lado, um grupo de veados come tranquilamente. Do outro, o grande tigre aproxima-se. Não se vêem. Pressentem-se, apenas. O veado que está de vigia dá o alarme e o grupo dispersa. O tigre não parece incomodar-se. Já comeu hoje, certamente. 
Muda de direcção. Nós seguimo-lo, agora apenas com o olhar.



Fotos: Muhipiti. Índia, 2010.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Big B is watching You

Para onde quer que se olhe, ele está lá.


Nos jornais, na televisão, nos autocarros.
Na fachada de antigos havelis ou pendurado em prédios decrépitos.


Charmoso e intemporal, convida-nos a comprar cimento, champô e fatos por medida.
Depois, desafia-nos a ser milionários.


Mencionar o seu nome diante de um indiano é despertar um sorriso de orgulho; um olhar de cumplicidade. 
Mostrar reconhecê-lo é a melhor aposta para obter uma informação nas ruas ou fazer um amigo.



O mais talentoso, versátil e popular actor Indiano do último século. 
Empresário. Político. Poeta. Apresentador. Figura polémica.


Amitabh Bachchan é o mais recente deus do panteão hindu.

Fotos: Muhipiti. Índia, 2010.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

A luz e a sombra

Dos proverbiais contrastes da Índia, o que mais profundamente me marcou foi Agra.

A cidade é uma teia de aranha, suja, feia e gigantesca, que o oportunismo foi tecendo em redor do Taj Mahal.

O Taj Mahal é o Taj Mahal. Sublime, impressionante e belo, não defrauda as expectativas.

Encontrámos Agra embrulhada em nevoeiro e poluição, com ruas cinzentas, ladeadas de casebres pobres e tristes. Circulámos penosamente por entre um trânsito caótico e surreal de carros velhos, motas decrépitas, frágeis bicicletas e peões de olhar vazio. À noite dormimos num quarto despido e minguado, com barras na janela e um cadeado na porta.


Num pequeno hotel, a escassos 100 metros do esplendor do Taj Mahal, a angústia que vinha sentido desde o início da viagem instalou-se, implacável.
Chorei.
Senti-me pequenina e confusa face a esta Índia incompreensível.
Impotente contra tanta miséria de facto e de espírito.
Perplexa por não estar a conseguir conciliar-me com esta realidade que, no fundo, não era tão diferente da que já conhecera noutros destinos.

“Onde há muita luz, a sombra é mais forte”, não é?

Fotos: Muhipiti. Índia, 2010.
Citação: Johann Wolfgang von Goethe

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

O templo encantado de Karni Mata (iii) Brincando com os Deuses


Dirigi-me ao interior do templo. 
No centro do edifício estava o santuário em honra de Karni; uma pequena capela em mármore que abrigava a estátua da deusa, datada do século XV.
Sempre atenta à posição dos ratos, contornei o santuário através de um corredor não muito largo e pouco iluminado. Ao fazê-lo, cruzei-me com uma idosa, curvada sobre um curto cajado, amparada no seu andar cambaleante por duas mulheres mais jovens. Com o tronco praticamente paralelo ao chão, caminhava como que rastejando. Tal como os pequenos deuses a quem, impedida de olhar os céus, oferecia a sua devoção.
Segui-a até à frente do santuário onde já outros fiéis aguardavam: as mulheres de saris coloridos sentadas no chão, os homens de pé, à sua volta. O sacerdote aceitou as oferendas, ateou uma pequena fogueira em frente ao altar e começou a recitar ladainhas, enquanto fazia soar um estridente sino de prata.


Absorta nesta contemplação, comecei a baixar a guarda. Esqueci-me de onde estava e de quem devia vigiar. Algo roçou o meu pé. Um rato mais atrevido acabara de lhe passar por cima. O meu coração começou a bater com mais força. Enojado, assustado, excitado.

Apressei o passo para contar  a Muhipiti, mas ela já estava na fase seguinte. Fui dar com a minha amiga inclinada sobre um ratinho ... fazendo-lhe festas na cabeça. 
Festas na cabeça.... !!!!!
Do rato ... !!!!!!
- Francamente! E se ele te morde?!
Ela riu-se sem deixar de afagar o ratito e disse, tranquila:
- Nã...


Face à sua descontracção, não quis ficar atrás. Munida de uma coragem que só me visita durante as férias, lá me chego ao pé do ratito que, tenho de admitir, era mesmo patusco. Toco-lhe na cabeça. Primeiro só com a ponta do dedo, a medo. Depois comecei a afagá-lo suavemente. Logo o seu focinho se dirigiu para a minha mão e senti o seu dentinho contra o meu dedo, as cócegas do seu bigode.
E, derreti-me! O encantamento tomou o lugar do nojo e os repelentes roedores transformaram-se em ratinhos adoráveis.
O resto do tempo que passámos no templo foi mágico. Não consegui deixar de fazer festas a todos os ratinhos que via e até achei piada quando um deles me fez um buraquinho na meia de vidro.
A minha perspectiva alterou-se por completo. Entrara num mundo diferente, fora da realidade. Por isso, não foi de estranhar que quando um simpático ratinho se empoleirou num degrau e começou a puxar as calças cor-de-rosa da Muhipiti, eu imediatamente pensasse nas ratinhas costureiras do filme Cinderela.


Foi dos momentos mais recompensadores desta viagem, a manhã que passei no templo onde 20,000 mil ratos são alimentados, protegidos e venerados.

Fotos: Muhipiti. Karni Mata, Índia. Novembro. 2010.

sábado, 24 de setembro de 2011

O templo encantado de Karni Mata (ii) Descalças no templo

Seria impensável passar por Bikaner sem visitar este templo.
A ideia atraía-me tanto quanto me assustava. Ratos? Hyagh! Que nojo!!


Mesmo assim, lá fomos. A Muhipiti, que é pouco dada a estes melindres, entrou confiante e ansiosa por fotografar. Eu segui-a, com passos hesitantes, agarrando a mochila à minha frente, como se fosse um escudo.


Para lá das grandiosas portas de prata, vi o primeiro rato. Era pequeno e rechonchudo. Atravessou o pátio a correr, parou por uns instantes a cheirar o ar e desapareceu por um buraco na parede. Respirei fundo, agarrei-me com mais força à mochila e avancei.
O ar morno da manhã não era pestilento, como seria de esperar. Antes trazia emprestado o aroma de chamuças e caril que exalava das casas vizinhas.
Havia uma rede a cobrir todo o pátio exterior com o intuito de proteger os ratos dos ataques de aves de rapina. Já aos pombos não era vedado o acesso. Entravam pela porta principal, altivos e com o papo inchado de quem tem direito a partilhar do manjar dos deuses. 
Por entre a malha metálica, o sol esgueirava finos raios, aquecendo o chão que os meus pés, descalços, iam tacteando com cuidado. Não me preocupavam os grãozinhos de milho esquecidos aqui e ali, mas uma frase que lera no meu American Express: quem pisar um rato tem de pagar ao templo o peso dele em ouro. Não sei qual das duas acções seria a mais desagradável...
Por seu lado, Muhipiti passeava-se descontraidamente, fotografava as esculturas embutidas nas paredes de mármore e os ratos, por ali espalhados agora às centenas, dedicando-se às mais diversas actividades, desde a higiene pessoal à catação social.


Num recanto do pátio encontrei a imagem que já tantas vezes vira na internet: dezenas de ratos dispostos lado a lado no rebordo de uma grande bacia cheia de leite. Confesso que comecei a sentir uma certa ternura por aquelas criaturinhas, à medida que as observava a beber sofregamente. Dei por mim a pensar que estava diante de mais uma contradição indiana: enquanto crianças morriam de fome nas ruas, estes ratos eram mimados e alimentados como reis.

Foi então que um restolhar de asas me sobressaltou. Um pombo viera aterrar mesmo ao meu lado, para me libertar de tão vãs filosofias.


... continua ...

Fotos: Muhipiti. Templo de Karni Mata, Índia. Novembro 2010.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

O templo encantado de Karni Mata (i)


Há muito, muito tempo, no longínquo reino do Rajastão, vivia uma mulher mística e virtuosa, que se dedicava de alma e coração aos pobres e aos oprimidos. Era tida como a incarnação da deusa Durga e chamava-se Karni Mata.
Um dia, o seu enteado Lakhan afogou-se num lago e Karni Mata implorou a Yuma, deus da morte, que ressuscitasse o rapaz. Yuma replicou que não conseguia fazê-lo, mas que ela, enquanto incarnação de Durga, a Invencível, poderia devolver o jovem à vida. Karni Mata fechou-se com o corpo do enteado numa gruta durante três dias, ao fim dos quais Lakhan ressuscitou. Foi então que Karni Mata declarou que nenhum membro da sua família alguma vez morreria. Todos reencarnariam como ratos, sob a sua protecção.
E assim foi que os devotos da deusa Karni ergueram um templo em seu louvor, onde milhares de pequenos ratinhos têm vivido felizes para sempre.


Acredite-se ou não na lenda de Karni Mata, há factos relacionados com este templo ainda envoltos em mistério.
- porque é que nunca houve peste na região de Bikaner?
- porque é que não se vêem ratos nas imediações do templo?
- porque é que os ratos não mordem ou se sentem ameaçados pelos visitantes?
- porque é que nunca se vêem crias e a população se tem mantido constante ao longo dos séculos?
- porque é que os milhares de ratos de Karni Mata são todos da mesma dimensão e cor?
- porque é que existe apenas um rato branco (considerado a incarnação da própria Karni Mata, é extremamente raro e auspicioso vê-lo)?

Talvez apenas os habitantes do templo conheçam os seus segredos ....


... continua....


Fotos: Muhipiti. Karni Mata, Índia. Novembro 2010.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

A Grande Alma

Raj Ghat - local da cremação de M. Ghandi em Nova Delhi

मोहनदास करमचंद गांधी (Mohandas Karamchand Gandhi) é sinónimo de não-violência, justiça, coragem, sabedoria. Representa grandeza e humildade em doses iguais.

A Grande Alma. O espírito motor da independência da Índia, figura ainda hoje amada como o Pai da Nação. Um homem cujos valores nos deviam inspirar e motivar todos os dias.

"Generations to come will scarce believe that such a one as this ever in flesh and blood walked upon this earth”.
A. Einstein

Já o sabia dos livros e filmes. Confirmei-o ao visitar a casa museu de Mani Bhavan, em Mumbai.

A casa pertenceu a Shri Revashankar Jhaveri. Sempre que se deslocou a Mumbai, entre 1917 e 1934, Ghandi ficou aqui instalado. Foi igualmente aqui que Ghandi se entregou a um jejum de quatro dias com vista a restaurar a paz na cidade, em Novembro de 1921.

O prédio situa-se num bairro residencial abastado perto do centro de Mumbai, mas suficientemente apartada do rebuliço intenso para constituir um oásis de tranquilidade.

No r/c está instalada uma biblioteca com literatura alusiva à vida e legado de M. Ghandi. Por todo o edifício, fotos e documentos antigos cobrem as paredes. 

No último piso, uma reconstituição da sala onde Ghandi passou a maior parte do seu tempo na mais pura frugalidade, e tecendo o algodão indiano cuja exportação estava proibida pelo Raj.

Casa Museu Mani Bhavan
Na sala ao lado, quadros vivos em miniatura representam os momentos chave da vida de Mahatma Ghandi: a expulsão do comboio na África do Sul, a marcha do sal, a visita a Londres.

No segundo andar está conservada a correspondência de Ghandi com líderes importantes do seu tempo, de destacar a carta que escreveu a Hiltler em 1939.

"Dear Friend,"
"Will you listen to the appeal of one who has deliberately shunned the method of war not without considerable success?"

Fotos: Muhipiti. Índia, 2010

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Khajuraho ...... Uau!!

Para quem acaba de chegar de grandes metrópoles, sujas e barulhentas, como Delhi ou Agra, Khajuraho, com os seus 19 mil habitantes, apresenta-se como uma aldeia de ruas comparativamente vazias de gente, lixo e rebuliço.
Apesar de a paisagem, verdejante e fresca, ser um contraste bem-vindo depois da secura desértica do Rajastão, não foi para apreciar a tranquilidade rural que nos deslocámos ali.
Fomos atraídas pelos templos medievais hindus e jain, famosos pelas suas esculturas eróticas, património mundial da UNESCO. 


Chegámos de noite ao complexo ocidental de templos para assistir ao “light and sound show”. Já lá estavam outros turistas, sentados em cadeiras de plástico, num improvisado auditório ao ar livre. A única iluminação era fornecida pela lua envergonhada e o seu humilde séquito de estrelas. As cigarras cantavam baixinho e os turistas murmuravam em reverência ao que apenas se adivinhava à nossa volta, na expectativa de algo grandioso e extraordinário.

Uma música suave brotou da escuridão e sobre ela elevou-se a voz quente, densa e poderosa do actor indiano Amitabh Bachchan:

“This is the spirit of the builders of Khajuraho”


Começava assim o relato da história deste sítio incrível, mas confesso que não prestei muita atenção. Qualquer coisa sobre terem sido construídos entre 950 e 1150 durante a dinastia Chandela e de terem sido descobertos para o mundo por um militar inglês em finais do século XIX.
“Deve estar tudo no Wikipedia”, pensei e deixei-me levar pela música de fundo e pela voz; hipnotizada pela beleza do timbre, pelo ritmo onírico da dicção.
Frágeis luzes verdes e amarelas projectavam-se contra os templos, que áquela distância não eram mais do que monstros de pedra. Na noite de Khajuraho, o esplendor e a magia pertenceram apenas à voz de Bachchan.

Mas, de dia, a luz devolveu o espírito à pedra e foi a vez dos nossos olhos se deslumbrarem.


O meu talento descritivo recua humildemente perante tamanha profusão de beleza.
Por onde começar? 
Não há um milímetro de pedra que não tenha sido esculpido com sensibilidade e delicadesa. Deuses dançantes, amantes em êxtase, caravanas de camelos, sodomia e cenas domésticas. Tudo impressiona. Tudo comove! 
Os meus olhos não sabiam onde pousar; se nos diáfanos saris, na expressão dos olhares que contam histórias, na extravagância das posições eróticas.
Por fim, cansada de tentar fixar tanto pormenor, sentei-me na escadaria que leva a um dos templos. Era cedo e a maior parte dos visitantes ainda estaria nos hotéis. Os pássaros cantavam, os esquilos saltitavam na relva, uma mulher varria o passeio curvada sobre a pequenez da vassoura. 
Deixei o tempo passar, sentindo a poesia que emanava da pedra.


Fotos: Muhipiti. Khajuraho, Índia. Outubro 2010.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Citando Moravia

O eco da Índia de Moravía (1961) chega aos nossos dias (2010), ilustrado por Muhipiti.

“A Índia é um conceito da vida. (...) O bem conhecido conceito, segundo o qual tudo aquilo que parece real não o é, e tudo aquilo que não parece real é real. Deste conceito deriva a desvalorização completa da vida como coisa absurda e dolorosa, e a convicção de que o homem não deve agir para melhorar o mundo.”


"Também voltarei a ver este camponês (...), centenas de vezes, durante a viagem pela Índia; variará, mas pouco, a cor do turbante ou o tecido do pano, porém a sua expressão será sempre aquela, um misto de paciente resignação, de imperturbável ignorância e de ancestral melancolia.”

“(…) na Índia a mão que se estende para implorar caridade é idêntica à mão que se estende para colher um fruto que pende de um ramo e não pertence a ninguém”; (…) na origem daquele gesto encontra-se uma situação normal e geral de pobreza extrema, que muitas vezes acumula com um ofício exercido com competência e assiduidade. Deste modo, a esmola é quase uma obrigação para quem a dá e quase um direito para quem a pede.”


“O próprio fenómeno da mendicidade levanta a suspeita de que a pobreza na Índia não é um facto contigente e remediável, mas sim um traço constitutivo, de modo que modificá-la ou tentar anulá-la significaria alterar completamente o carácter do povo indiano.”

“(…) as lojas pequeníssimas, transbordantes de mercadorias, estão no alto, no cimo de quatro ou cinco degraus, porque o esgoto a céu aberto e pestilento escorre entre o passeio e as casas; vistas de baixo, com os seus velhos espelhos dourados, os seus tapetes puídos, as suas prateleiras decrépitas e os seus vendedores acocorados no chão, seduzem com a ilusão de hipotéticos produtos inéditos de um artesanato exótico e ingénuo. Mas é uma ilusão que pouco dura; subidos aqueles degraus, encontramo-nos perante os objectos do costume, fabricados em série e ainda por cima de fraca qualidade (…).”

“(…) o estrangeiro sentir-se-á continuamente surpreendido por ver os indianos dedicarem os cuidados mais meticulosos a ablusões e precauções que lhe parecem surpéfluas (…), e por outro lado ficarem completamente indiferentes perante a sordidez e a imundice que são próprias dos bairros mais pobres das suas cidades.”

Texto: Alberto Moravia, Uma Ideia da Índia (ed. Tinta da China)
Fotos: Muhipiti

terça-feira, 17 de maio de 2011

Uma valsa no Céu

Quando a conversa é voar de balão, as opiniões dividem-se entre: “Ah, já fiz, tá feito” e “Quero mais!!”
Descobri que me identifico com estes. Depois do excitante baptismo sobre a savana do Serengeti, não hesitei em repetir a experiência na Índia.
De madrugada, atravessamos as ruas de Jaipur, com destino a Amer. Paramos junto a uma clareira, onde jazem dois gigantescos farrapos coloridos à espera do sopro quente da vida.
O nosso motorista dos céus recebe-nos com um grande sorriso. Chama-se Fernando, é de Barcelona e está encantado por ter dos hermanas a bordo. Os restantes três passageiros são, sem surpresa, americanos reformados. Felizmente, desta vez, fomos dispensadas dos tradicionais oh my god!
Depois de um aromático e reconfortante chai, partimos, deslizando ao sabor suave do vento.
A neblina peganhenta que nos envolve turva um pouco a visão, mas ainda distingo duas galinholas e um veado correndo entre montes e vales pouco profundos, de vegetação quase desértica. O silêncio tranquilo e embalador, apenas interrompido pelo atiçar das chamas, compensa a falta de espectacularidade da paisagem.
Então, Fernando solta uma expressão animada, quando se apercebe que o vento hoje está generoso e nos conduz mesmo por cima do magnífico Forte de Amer, cujas imponentes muralhas abraçam um lago artificial.

Já não me lembro quanto tempo voámos. Sabe sempre a pouco.
Lentamente, o nosso balão vai descendo.
Fernando mudou-se para Jaipur com a família há dois anos e, desde então, faz este percurso duas vezes por dia, sempre que as condições atmosféricas o permitem. A sua experiência diz-lhe que é sempre preferível aterrar antes de sobrevoar a cidade. Desta vez, está a apontar para um terreno baldio com aspecto de campo de futebol da liga dos últimos.
Chegados a terra firme, aplaudimos e aguardamos autorização para sair da caixinha. Esperamos que o ajudante de Fernando vá pedir a alguém que abra o portão do campo, cujos muros têm mais de dois metros de altura.
Ali perto, quatro homens sikh, de tronco nu e turbante na cabeça, estão a jogar vólei. À nossa volta começa a juntar-se um grupo de crianças sujas e maltrapilhas. A sua expressão é de medo e curiosidade. Não sei porquê, mas lembram-me hienas vigiando uma presa que já tem dono.
O ajudante regressa com a notícia de que o portão não se abre. Toda aquela gente deve ter saltado o muro. A Fernando, não resta alternativa se não voltar a pôr o balão no ar, mas apenas o suficiente para que ele salte o muro sem voltar a ganhar os céus. E isso requer preparação.
 Os jogadores de vólei continuam alheios à nossa presença, como se fosse natural um balão daquele tamanho estar ali àquela hora. Já os miúdos vão ganhando confiança. Rendidos ao sorriso de Muhipiti e ao feitiço da sua máquina fotográfica, metem conversa, fazem poses e macacadas à nossa volta. E, finalmente, ajudam a içar o balão por cima do muro para fora do campo, onde a aventura termina.
Até à próxima.
Não.
Até às próximas!

Fotos: Muhipiti. Jaipur, Índia. 2010

domingo, 8 de maio de 2011

Liberdade ...

Ai que prazer
não cumprir um dever

Varanasi, Índia

Ter um livro para ler
e não o fazer!
Ler é maçada,
estudar é nada.


Templo Jain. Bikaner, Índia

O sol doira sem literatura.
O rio corre bem ou mal,
sem edição original.
E a brisa, essa, de tão naturalmente matinal
como tem tempo, não tem pressa...

Varanasi, Índia

[...]

Quanto melhor é quando há bruma.
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Karni Mata, Índia

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,

Entre Bikaner e Jodhpur, Índia

Flores, música, o luar, e o sol que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

Fatehpur Sikri, Índia

E mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças,
Nem consta que tivesse biblioteca

Meherangarh Fort, Jodhpur, Índia
Texto: Fernando Pessoa
Fotos: Muhipiti