Das mãos negras pendiam colares e pulseiras, feitos de contas coloridas, que já víramos tantas vezes por estas paragens. A sua parlapatice era igual à de tantos outros vendedores com quem nos cruzáramos e, quando se apercebeu do nosso desinteresse pela mercadoria, foi com a habitual pergunta que nos tentou cativar:
- Where are you from?
- Portugal, respondi.
Mas, desta vez, a resposta, a que também já nos acostumámos ("ah... Cristiano Ronaldo"), fez-se tardar. O jovem olhou para nós, em silêncio, perplexo.
Fiquei contente. Acho que até sorri, triunfante. Prefiro que este jovem desconheça por completo o meu país, em vez de o associar, automaticamente, a um arrogante pontapeador de bolas...
O meu sorriso, contudo, foi-se desvanecendo à medida que ouvia a sua resposta, pronunciada num inglês pobre mas confiante:
- Yes... I know Portugal. Cristiano Ronaldo … plays in Madrid now.... Maniche and .... Nuno Gomes .... and Miguel... he plays in Valencia.
Não pudemos deixar de rir, estupefactas perante tão profuso conhecimento futebolístico.
A atitude do jovem também se alterou. Para ele, deixámos de ser mais umas mzungus (brancas) a quem impingir artesanato. Tomámos estatuto de deusas, nascidas na terra que gera heróis capazes de tantas e excitantes proezas com uma simples bola mágica.
Entretanto, outros vendedores aproximaram-se do jeep e tentam chamar a nossa atenção, gritando "Holá, señoritas".
Com um inabalável "no spanish", o fã de Ronaldo fechou a janela e virou-se de costas para o jeep, afastando os vendedores com a sua postura protectora. E assim ficou, qual guardião de um templo proibido, até à nossa partida.
Uma a uma, a bagagem de mão é aberta e inspeccionada. Não se trocam palavras, apenas gestos mecânicos. Calha-me o oficial mais jovem. Observo-o e pergunto-me se terá família, se alguma vez sorri.
Da minha mochila retira um livro. "The Gun Seller, by Hugh Laurie", é o romance policial que trouxe para servir de contraponto a toda a espiritualidade que espero encontrar no Tibete. Na capa está desenhada uma pistola acabada de disparar, com o fumo ainda a sair do cano. O rosto do jovem trai uma emoção. Acho que não teria ficado mais assustado se tivesse encontrado uma arma verdadeira!
De repente, tudo pára no aeroporto. Atrás de mim, uma jovem americana solta um sonoro “Oh, my god!”.
Com um gesto que não admite recusa, o oficial manda-me colocar a mala grande em cima do palanque e abri-la. O seu conteúdo é esvaziado, observado e descartado no chão do aeroporto, desde os chinelos de quarto à roupa interior.
É então que um embrulho em plástico preto é retirado da mala. “Ai, agora!” exclama Mara, ecoando a minha preocupação. São as compras que fiz no Thamel de Kathmandu: dez DVDs piratas e um livro, ainda por abrir. Os filmes são fiscalizados com desdém, mas o livro merece uma atenção especial. Na capa lê-se “Himalaya, by Michael Palin”.
Mais um gesto e o livro é levado para outra sala. Espero, impotente. Mal consigo conter as lágrimas e a raiva, que tento esconder dos guardas que se juntaram à minha volta. As minhas amigas, longe de mim, à distância de um murmúrio, fazem-me chegar palavras de conforto: “Vá, tem calma!” - “Pensa no que nos vamos rir, quando contarmos isto lá em casa!..."
Uma mulher polícia regressa, enfim, com o meu livro aberto nas mãos. Para minha surpresa, aponta para a foto do Dalai Lama, no seu exílio na India. A página é rasgada, perante a minha indignação silenciosa.
Já mais tarde, no hotel, folheio, pela primeira vez, o livro que nos confrontou, à chegada, com a dura realidade da ocupação chinesa. E, só então, reparo numa outra foto do líder espiritual tibetano, que escapara à furiosa censura dos guardas.
É impossível não nos sentirmos impotentes face à arrogância da China todo-poderosa. Mas consigo sorrir, ao pensar naquela foto proibida do Dalai Lama, que durante uma semana viajou comigo, clandestina, no que resta do Tibete.
















